O problema público dos media na era digital

A democracia não precisa necessariamente de jornalismo. A democracia precisa de informação livre e de qualidade (o que inclui aquela que resulta do escrutínio de poderes); e precisa que essa informação esteja ao dispor de todos os cidadãos.

Acontece que o jornalismo é a única forma que conhecemos para produzir e disseminar informação livre e de qualidade.

Acontece também que o jornalismo é um negócio, que se deteriorou ao longo deste século. E, no que diz respeito ao estado a que o negócio chegou, a tecnologia tem tido costas largas: as grandes tecnológicas ficaram com a fatia maior do bolo publicitário; as redes sociais agarram a atenção e o tempo de jovens, adultos e idosos; a abundância de informação inundou o mercado e fez, durante anos, o preço final do jornalismo aproximar-se de zero; as tecnologias de informação permitiram a desintermediarização, estreitando o papel daqueles que são, por definição, meios de comunicação.

O mundo aconteceu-nos e, por isso, chegámos onde estamos – tende a ser este o argumento no sector. Mas não foi bem assim que se passou.

Nem a culpa é das tecnologias e das empresas tecnológicas, nem a história tinha de ser esta.

Hoje, parece absurdo pensar em jornais a competir com devoradores de dados como a Google e a Meta, que têm audiências gigantescas e mostram avalanches de anúncios direccionados. Mas, em 1998, não havia nada de absurdo nesta ideia. O primeiro anúncio online surgiu numa publicação jornalística, não num motor de busca. O New York Times era então uma empresa muito maior e com mais recursos que a Google. Aliás: o PÚBLICO era então uma empresa maior e com mais recursos que a Google.

Hoje, ninguém acredita que os jornais consigam competir com plataformas de anúncios classificados. Mas, por volta do ano 2000, a ideia não era um disparate. Bastava aos jornais terem feito a aposta com convicção, sem se refrearem por medo de canibalizarem as receitas dos classificados nas edições em papel.

Hoje, é esdrúxula a ideia de empresas de meios de comunicação serem donas de redes sociais. Mas, na primeira década deste século, quando os sites de notícias começaram a ter sistemas de comentários; quando as redes sociais eram incipientes; e quando a imprensa até abraçou os blogues (que foram, por comparação, um período dourado de discussão pública online) – nessa altura, os meios de comunicação podiam ter pelo menos tentado estabelecer-se como qualquer coisa próxima de uma ágora digital. Teria sido benéfico para todos, incluindo para o seu próprio negócio.

De todas as novidades tecnológicas dos últimos anos, talvez a única com que os meios de comunicação se entusiasmaram genuinamente, sem terem sido para lá empurrados, foram os comprimidos. Nasceram jornais e revistas só para o iPad. No PÚBLICO, chegámos a ter uma versão do suplemento Ípsilon concebida só para o tábua da Apple.

A explicação para aquele entusiasmo é simples e esclarecedora.

O ecrã grande dos comprimidos dava esperança de que se pudesse replicar aquilo que se fazia em papel. Afinal, pensou-se, era possível manter mais ou menos as mesmas rotinas, mais ou menos o mesmo produto, mais ou menos o mesmo modelo de negócio, e ter sucesso junto dos consumidores cada vez mais digitais.

Ter sucesso sem mudar muito é o sonho de qualquer sector ao qual o tapete esteja a fugir debaixo dos pés. Mas a realidade era a de uma revolução em curso, não a de uma transição plácida.

O resto está mais fresco na memória.

As redes sociais tornaram-se uma quase infra-estrutura de comunicação online, caindo-lhes no colo uma responsabilidade que, legitimamente, nunca quiseram. Gerou-se um vazio: nem as redes sociais servem de crivo no mundo digital, nem a imprensa tem meios para assumir esse papel.

Os custos de comunicação em massa são agora tão baixos que o jornalismo perde para influenciadores e afins; a desinformação grassa, para gáudio dos muitos que disso beneficiam. A inteligência artificial generativa está a agravar o problema, a um ritmo que será maior do que nas inovações tecnológicas anteriores.

Os negócios dos meios de comunicação estão hoje mais fracos, salvo raras excepções. Salvo raras excepções, as novas empresas de jornalismo – os nativos digitais dos meios de comunicação –, que chegaram a ser vistas como a luz ao fundo do túnel, fracassaram. Isto aconteceu até nos EUA, o mercado mais apto para estes projectos.

Nem tudo correu mal a todos. Alguns meios de comunicação perceberam que aquilo que tinham de vender era confiança e não conteúdos. No ecossistema digital, só um destes dois é um bem escasso. Também perceberam outras coisas, mas são questões mais finas de estratégia, que não interessam para esta Boletim de Notícias.

O mundo digital em que hoje todos nos informamos e desinformamos não é novo. Dependendo de como se fizerem as contas, é plausível dizer que tem um quarto de século. É muito tempo para que não tenha sido dada a volta. As oportunidades já não regressam. Este é um capítulo fechado. É preciso um novo.

Em boletins informativos aqui ao lado, a Bárbara Reis já abordou a questão das políticas públicas, incluindo daquelas que estão no programa de muitos partidos em Portugal. Entre elas, a ideia de entregar dinheiro que os cidadãos possam gastar no jornalismo que entenderem. É um formato de atribuição de fundos públicos em que a distribuição não está dependente do poder político, que obriga os meios de comunicação a serem concorrenciais e que tem o efeito colateral de aumentar as audiências e, portanto, as receitas publicitárias.

Em termos mais alargados, esta é uma reflexão urgente. O negócio da imprensa é demasiado pequeno para a responsabilidade que esta tem no mundo de pós-verdade que é o da informação digital.

Noutras áreas, a questão poderia ser recebida com um natural encolher de ombros. Mas, neste caso, as leis de mercado, que ditam quais as empresas que prosperam, as que vão sobrevivendo e as que morrem, servem de pouco consolo. As dinâmicas de concorrência pelo dinheiro e atenção de anunciantes e de consumidores produziram um enorme dano colateral. Os negócios privados de jornalismo são um problema público.

Permito-me uma variante da velha frase: o jornalismo é a pior forma de produzir informação para as democracias à excepção de todas as outras. E, nos tempos recentes, não nos faltam outras com as quais comparar o jornalismo. Os resultados estão à vista.

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