Tiros contra Trump e contra a democracia

Há alguma ironia nisto. Donald Trump definiu-se em Fevereiro como “o maior amigo que os donos de armas alguma vez tiveram na Casa Branca”. E já prometeu que a primeira coisa que faria se ganhasse as eleições presidenciais dentro de quatro meses seria reverter as restrições que afectaram proprietários e fabricantes de armas durante o mandato de Joe Biden. Neste sábado foi vítima de um ataque a tiro durante um comício.

Ouviram-se disparos enquanto discursava. Ficou ferido. Vimo-lo, segundos depois, de punho erguido e cara ensanguentada a ser empurrado pelos seguranças para fora do palco. Morreu uma pessoa que participava no comício, outras ficaram feridas.

Não é suposto morrerem pessoas num comício. Não é suposto um candidato à presidência numa das mais vibrantes democracias do mundo ser atacado a tiro.

É certo que nesta democracia não falta um rasto de atentados a presidentes, uns consumados outros não. E também é certo, como costuma dizer Trump, que as armas fazem parte da vida dos cidadãos do país “há séculos”. Ter uma arma é um direito consagrado na Constituição.

Mas os números são eloquentes: em 2022 cerca de 20 mil pessoas morreram nos EUA na sequência de crimes com armas de fogo; no ano passado, houve mais de 650 tiroteios com quatro ou mais mortos, muitos em escolas, de acordo com a organização Gun Violence Archiv. Nos dois anos anteriores foi ainda pior. Isto não se passa em mais nenhuma parte do mundo. As armas são um problema grave na sociedade norte-americana. E o alvo neste sábado não foi só uma pessoa em concreto, foi a democracia.

O Presidente Joe Biden tem defendido regras mais apertadas para travar a proliferação da violência. Mas a sociedade divide-se.

Metade dos norte-americanos (40% dos homens nos EUA declaram ter uma arma, sobretudo os republicanos e seus apoiantes) dizem que poder estar armado faz mais pela segurança do país do que restringir o seu acesso. A outra metade diz que a forma como o uso de armas se generalizou é parte do problema.

Trump, “o maior amigo…”, faz parte da primeira metade. E tem o apoio do mais influente grupo de pressão e defesa da venda de armas nos Estados Unidos (a NRA), o qual, na campanha para as presidenciais de 2016, gastou mais de 30 milhões de dólares no apoio à sua eleição.

Por tudo isto, é pouco provável que Trump agora mude. Até porque este ataque absolutamente condenável, sobre o qual, a esta hora, ainda pouco sabemos, vai deixar-lhe uma cicatriz na orelha, mas, num contexto de enorme fragilidade do seu opositor, Joe Biden, pode ajudá-lo muito na campanha. Também isso não deixa de ser irónico.

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