O bilhete para entrar na selecção de Roberto Martínez continua caro

Na selecção nacional masculina de futebol, quem teve a sorte e o engenho de aparecer no sítio e momento certos tem o seu lugar. Quem se atrasou, pouco pode fazer para o ganhar. Os jogadores das convocatórias de Roberto Martínez são como os porcos da fábula orwelliana: eles são todos iguais, mas há uns mais iguais do que outros.

Para muitos, a selecção nacional deve ser a elite dos jogadores portugueses, na qual devem entrar os que apresentem melhor rendimento individual nas semanas anteriores à convocatória. Para outros, a selecção nacional deve ser o grupo de jogadores que melhor rendimento apresentem juntos, independentemente do que façam individualmente nos seus clubes. Ambas são legítimas e têm virtudes e defeitos. Roberto Martínez, o seleccionador nacional, não só gosta mais da segunda ideia como a leva bem longe.

Como chefe daquela “banda”, ele define que só ali toca quem já tocou no passado. Se fosse o dono dos Queen, Martínez nunca aprovaria ver gente como Paul Rodgers ou Adam Lambert a assumirem o lugar de Freddie Mercury, como aconteceu há alguns anos.

Nos dois jogos pós-Euro 2024, o seleccionador de Portugal teve 180 minutos para testar novas soluções, novas caras e novos talentos. Desses 180 minutos, apostou em gente nova em… 60 segundos.

O herói que conseguiu esta proeza chama-se Pedro Gonçalves, que foi chamado aos 90 minutos do jogo frente à Croácia. E é só.

Martínez é o que menos muda no pós-Euro

Uma viagem pelos jogos das dez primeiras selecções europeias do ranking FIFA mostra-nos que Portugal foi a que menos minutos deu a novos jogadores.

Para os jogos da Liga das Nações frente a Croácia e Escócia, Martínez chamou seis jogadores que não estiveram no Euro 2024: Tiago Santos, Pedro Gonçalves, Renato Veiga, Francisco Trincão, Rui Silva e Geovany Quenda.

Só um foi chamado ao relvado, Pedro Gonçalves, com o tal minuto de utilização. Os restantes não só não entraram como, no caso de Quenda e Tiago Santos, nem foram ao banco na primeira partida.

O cenário europeu é o seguinte:

França: quatro jogadores novos, quatro utilizados, 360 minutos de utilização.
Espanha: cinco jogadores novos, dois utilizados, 41 minutos de utilização.
Inglaterra: sete jogadores novos, três utilizados, 114 minutos de utilização.
Bélgica: quatro jogadores novos, dois utilizados, 42 minutos de utilização.
Países Baixos (só um jogo): seis jogadores novos, dois utilizados, 31 minutos de utilização.
Itália: cinco jogadores novos, cinco utilizados, 438 minutos de utilização.
Croácia: seis jogadores novos, cinco utilizados, 368 minutos de utilização.
Alemanha: três jogadores novos, dois utilizados, 38 minutos de utilização.
Suíça: seis jogadores novos, cinco utilizados, 256 minutos de utilização.

Em matéria de novos jogadores chamados, Portugal até está acima da média: seis jogadores, sendo que a média das dez selecções foi 5,4. A equipa portuguesa só cai quando se analisa o número de atletas novos utilizados – um – e, sobretudo, os minutos que lhes foram dados – também um.

E há até casos curiosos como a Espanha, que supera largamente Portugal apesar de ser campeã da Europa – em teoria, uma selecção com menos necessidade de mexer no grupo do Euro 2024.

Também Inglaterra, Países Baixos (e com um só jogo) e França, com participações melhores do que a portuguesa no Europeu, superam claramente a “reciclagem” de Martínez. O Europeu deve, portanto, ter corrido bastante bem a Portugal.

Na Bélgica já era assim

Há duas formas de ver esta questão. Uma delas remete para a eventual importância vital dada à Liga das Nações, que levará Martínez a não encarar esta prova como uma plataforma de experiências, mas como uma obrigatoriedade de triunfo que não se coadune com invenções. Não é, ainda assim, o cenário mais provável, já que nem o menos titulado dos treinadores achará que a Liga das Nações vale tudo isso.

A outra hipótese diz-nos que o seleccionador nacional só não é fã de mudanças e que o método de trabalho aplicado consiste na definição de uma base de jogadores e a entrada posterior nessa base se deve a casos esporádicos de rendimento fora do normal e/ou forçados por lesões ou desemprego dos atletas.

Alguns dirão que isso é óbvio quando se chama jogadores do campeonato da Arábia Saudita, mas a questão é mais profunda do que isso.

Um levantamento do jornalista António Tadeia, em 2022, mostrava que não foi em Portugal que Martínez começou a trabalhar desta forma, possivelmente por achar que só 23 ou 25 jogadores é que têm qualidade.

Na Bélgica, equipa na qual a fartura também abundava, ele já trabalhava com um lote reduzido – não só incluía pouca gente nova como não tinha pudor em chamar jogadores de campeonatos menos competitivos, se esses jogadores faziam parte do núcleo habitual. Era também uma selecção envelhecida muito por responsabilidade da forma de trabalhar de Martínez.

Em Portugal, como na Bélgica, gabemos a sorte e o engenho de quem pôde chegar-se à frente nas primeiras convocatórias de Martínez. Foi aí que esteve o “ouro”.

A título de curiosidade, nos três momentos pós-grandes competições (um Mundial e dois Europeus), Fernando Santos chamou uma média de sete jogadores novos em relação à prova anterior e utilizou, também em média, três desses jogadores – e com bastante mais do que um minuto de utilização, já que muitos deles até saltaram para o “onze”.

O azar de uns é a sorte de outros

Que implicações a gestão de Martínez pode ter para o futuro da selecção? É difícil medir. Por um lado, há necessidade de mexidas forçadas em alguns sectores – Pepe saiu, Rui Patrício não joga, Conceição e Cancelo trocaram de clube e há sempre lesões aqui e acolá.

Por outro lado, existe este método de trabalho de Martínez, que vê a selecção como um grupo para evoluir com trabalho de médio/longo prazo e não como um local de mérito para quem mais se destaca individualmente – e essa não é uma premissa desprovida de nexo, por muito que o cidadão comum aprecie fazer convocatórias com base no mero rendimento individual nos clubes.

Esta forma de trabalhar, tão certa ou tão errada como outras, adensa outra questão, que é a de o treinador espanhol olhar para a convocatória posição a posição e não como uma bolsa de mérito. Isto significa que a chegada de novos jogadores se baseia mais em aproveitamento de má fortuna alheia do que propriamente em mérito individual.

Tiago Santos, Renato Veiga, Trincão, Rui Silva, Quenda e Pedro Gonçalves não foram chamados apenas por estarem a ser bons no seu clube, mas também – ou sobretudo – porque João Cancelo, Pepe, Francisco Conceição e Rui Patrício tiveram problemas diversos. No caso de Pedro Gonçalves e Quenda, havia vagas de Matheus Nunes e Ramos no meio-campo e no ataque.

Isto significa que o grupo está escolhido e que só as lesões permitem chamar caras novas? Não será justo dizê-lo, até porque Martínez não fez meras trocas de posição por posição (não chamou um avançado para o lugar de Ramos, por exemplo, mas sim Quenda, que pode actuar como extremo, ala ou lateral).

Mas o passado e o presente de Martínez sugerem que o futuro não fuja muito dos 20 jogadores-base. Depois, sobram uns poucos lugares para novidades. Mas, em teoria, esses vão lá para estarem a observar, no banco, o que os colegas mais antigos fazem no relvado.

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