História de duas plataformas

“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da tolice, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a época da Luz, foi a época das Trevas, foi a Primavera da esperança, foi o Inverno do desespero (…)”

É improvável citar Charles Dickens numa Boletim de Notícias sobre a entrada em bolsa de redes sociais. Mas aquela frase, que serve para tantas outras ocasiões e aparece tantas vezes ainda mais truncada, assenta bem aos últimos dias – e aos últimos tempos.

À hora de escrita destas linhas, algumas horas após os mercados abrirem em Nova Iorque, as acções da Truth Social, a rede social de Donald Trump, despenhavam-se numa queda de 23%. A descida fez evaporar a valorização conseguida nos primeiros dias depois da estreia, na terça-feira passada.

Ainda assim, a empresa tem uma capitalização bolsista superior a seis mil milhões de dólares, dos quais cerca de 57% são de Trump.

A operação deu-lhe, em teoria, o tipo de fortuna que, apesar de uma vida a gabar-se de ser rico, nunca esteve perto de ter. A Bloomberg coloca-o (com números de sexta-feira) não 350º lugar na lista de “bilionários”.

Na prática, Trump está impedido de vender as acções durante seis meses (o que é habitual neste tipo de operações). Além disso, uma venda levaria a uma queda ainda mais vertiginosa: Trump é o rosto e o único trunfo da plataforma.

Por outro lado, Trump pode (assim um banco ou outra instituição as aceite) usar as acções como garantia para um empréstimo. Jeff Bezos, por exemplo, recorre com frequência a esta táctica em vez de vender acções da Amazon. Os empréstimos só são um problema para quem não pode pedir muito, e esta jogada permite a Bezos obter milhões em liquidez sem perturbar os mercados, além de evitar os impostos que seriam devidos por causa das mais-valias de uma venda.

Mas a Truth Social não é a Amazon, nem nada que se pareça.

O apetite dos investidores pela rede social não assenta num negócio rentável, nem sequer num negócio promissor. A empresa tem receitas incipientes, dá prejuízo e regista um número de utilizadores que a aproxima mais dos valores de um site de notícias de meio da tabela do que de uma plataforma social de sucesso.

Os números são tão pequenos que não vale a pena compará-los com o Facebook ou o X. Deixemo-los aqui, sem delongas:

  • Em 2023, a empresa teve 4,1 milhões de dólares de receita.
  • Os prejuízos foram de 58,2 milhões.
  • Em Fevereiro, a aplicação móvel tinha cerca de um milhão de utilizadores activos nos EUA (de acordo com estimativas de uma analista; a empresa não comunicou este indicador, o que é invulgar).

É claro que os números estão longe de contar a história toda. A começar pela forma pouco usual da entrada em bolsa.

A Truth Social é propriedade de uma empresa chamada Trump Media & Technology Group. Esta fundiu-se com o que é, na prática, uma empresa vazia, que já estava em bolsa, chamada Digital World Acquisition Corporation. Foi assim, por exemplo, que também chegou à bolsa a Nikola, uma fabricante de camiões eléctricos em tempos apregoada como a próxima Tesla. (Entretanto, o fundador da Nikola foi condenado a quatro anos de prisão por fraude e as acções valem hoje menos 65 vezes do que valiam no pico de 2020.)

Toda a operação de Trump contou com investidores de países como uma China e a Rússiamas esse é um tema que não cabe nesta Boletim de Notícias.

Vamos agora à segunda plataforma social a estrear-se recentemente nos mercados financeiros: o Reddit, um conhecido fórum online, que em parte encarna o espírito mais libertário e utópico dos primeiros tempos da Web; e, também, uma plataforma conhecida por inspirar investidores a comprar acções inusitadas só pela piada (as chamadas estoques de memes).

As acções do Reddit chegaram ao fim do dia de estreia com um salto de 48%. Já cederam parte desses ganhos. Esta tarde, a cotação caía 8%. A capitalização bolsista é de sete mil milhões de dólares, por coincidência, não muito diferente do valor da plataforma de Trump.

Apesar de ter sido criado há quase 20 anos, o Reddit não dá lucro. Em 2023, teve prejuízos de quase 91 milhões de dólares, e receitas de 804 milhões, a maior parte das quais vindas de publicidade. Tinha uma média de 73 milhões de utilizadores diários.

A plataforma vive de conteúdos criados pelos utilizadores, que criam e participam em inúmeros tópicos de discussão. São também os utilizadores que fazem a moderação do que é publicado.

Numa decisão peculiara empresa decidiu dar a alguns utilizadores mais activos a possibilidade de comprarem acções antes de estas ficarem à disposição do público em geral, algo que é tipicamente um privilégio de grandes investidores. Também anunciou que tem um acordo com a Google para que o conteúdo seja usado para treinar os sistemas de inteligência artificial (uma ideia que pode causar justificada preocupação a quem esteja habituado a ler o que se publica no Reddit).

Sendo esta a entrada em bolsa de uma plataforma que na pandemia foi responsável por catapultar acções improváveis como as da AMC (uma cadeia de cinemas), as da Gamestop (uma cadeia de lojas de videojogos) e da Kodak (sim, há aqui um padrão), era expectável que a cotação do Reddit sofresse oscilações que não seriam inteiramente explicadas por uma análise financeira.

Mas a Truth Social está num patamar diferente.

Os seis mil milhões de capitalização registados hoje (ou os três ou nove mil milhões da próxima semana) são um valor desligado do negócio. É tudo uma questão de crença e tolice – e de apoio a Trump independentemente de tudo o resto. É, de uma forma perversa, um triunfo da ideologia sobre a racionalidade que se imputa aos mercados.

É o melhor dos tempos, é o pior dos tempos.

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