Há dias fui entrevistado por uma televisão numa reportagem sobre o Campeonato Europeu de Futebol: Não tenho afeição futebolística mas sou um crítico acérrimo da influência excessiva que o futebol tem sobre a sociedade portuguesa. Nada tenho contra o desporto “futebol”: mas tenho muito contra o papel excessivo com que o futebol ocupa o espaço mediático, social e até político. Podemos chamar “bolite” (ite) a esta colonização ou inflamação social por parte de um desporto: especial, de massas e apaixonante, mas – ainda – apenas um desporto entre muitos outros.
No corpo humano a terminação “ite” numa doença indica a inflamação de um tecido ou órgão específico. O sufixo deriva do grego “itis”, que significa “inflamação” ou “doença” e ocorre em amigdalite: inflamação das amígdalas ou em artrite: inflamação das articulações. Num corpo social, como um país, esta inflamação cria disfunções, atrasa o desenvolvimento e distrai a comunidade daquilo que é realmente importante.
Os grandes manipuladores sociais (os políticos populistas) adoram a “bolite” e alguns deles começaram as suas carreiras precisamente no comentário desportivo. Outros políticos (e até deputados sucessivamente eleitos para o Parlamento) fazem questão de acumular as suas funções de representação democrática com a representação de um clube nos canais de televisão. O fenómeno não está circunscrito à esquerda ou à direita mas atravessa todas as ideologias e credos: distrai os nossos eleitos das suas funções democráticas; atrasa e bloqueia a justiça quando são agendadas buscas policiais para datas convenientes; quando detenções são impedidas por telefonemas de adeptos; quando se oferecem bilhetes a deputados que, no Parlamento, escrevem e votam leis que favorecem o mundo do futebol; quando se desperdiçam milhões em estádios de nulo ou negativo valor social e que poderiam ser investidos em causas sociais ou na – já demasiado prolongada – crise habitacional; quando se desviam forças policiais para “escoltar” marchas de adeptos; quando se criam clivagens, ódios (que até provocam assassinatos e rixas) entre cidadãos normalmente cumpridores e ordeiros.
O futebol é um desporto, hoje, tão fascinante como o eram as corridas de bigas na Constantinopla de Justiniano. Mas, como sucedeu durante o reinado do maior imperador da história de Bizâncio, quando uma revolta que começou no hipódromo entre os clubes dos “verdes” e dos “azuis” esteve prestes a fazer tombar a cidade, também o futebol está agora a ameaçar – pelo seu excesso – os fundamentos da nossa sociedade.
Em Portugal, esta “bolite” desvia recursos e atenção de áreas cruciais como educação, saúde e infraestruturas. Governos e empresas patrocinadoras investem grandes quantias em estádios e na publicidade em eventos desportivos, negligenciando necessidades mais urgentes da população ou investimento nos seus recursos humanos e em investigação. A idolatria pararreligiosa dos jogadores de futebol cria uma cultura de celebridades em que os atletas são vistos como modelos a serem imitados, independentemente do seu comportamento fora de campo. Isto leva a uma distorção dos valores sociais, com habilidades desportivas a serem mais valorizadas do que contribuições intelectuais e de trabalho. A intensa rivalidade entre seguidores clubísticos pode levar a comportamentos violentos e antissociais: conflitos entre claques, vandalismo e até mesmo crimes graves podem ocorrer em nome da “paixão” pelo desporto, exacerbando tensões sociais e prejudicando a convivência pacífica.
O futebol, quando colocado num pedestal, pode alienar pessoas que não se interessam pelo desporto, criando divisões dentro da sociedade. Esta alienação pode levar a um sentimento de exclusão e marginalização daqueles que não partilham a mesma paixão, afectando negativamente a coesão social e alimentando ódios e divisões não somente entre claques e simpatizantes mas também para com quem não segue este desporto desta forma tão apaixonada. O futebol é um desporto empolgante, magnífico e muito apaixonante. Mas, por favor, não deixemos que se transforme numa doença.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico