Mulheres: um alvo a abater

Aqui há umas semanas, havia uma tendência nas redes sociais em que era perguntado às mulheres se preferiam ficar perdidas numa floresta com um homem ou com um urso. Numa destas noites, depois de uma semana a ler notícias sobre violações e assassínios de mulheres, subia uma rua da cidade com a minha filha e obriguei-a a desviar caminho porque num pequeno jardim estavam três jovens sentados num banco. Fomos pela berma da estrada. Na minha cabeça era preferível sermos atropeladas a violadas — o urso é melhor do que o homem.

Embora os cérebros de homens e mulheres sejam iguais, conforme nos conta Luísa V. Lopes, no podcast Um Homem não Chora — a neurocientista tem uma coluna de opinião mensal no Ímpar —, a verdade é que começamos a formatá-los desde que nascem. Persistimos em ensinar às nossas filhas a ter cuidado e aos nossos filhos a serem os maiores. Elas passivas, eles activos. Elas obedientes, eles senhores do mundo, que não aceitam um não, que dão tudo por garantido. Claro que estou a generalizar e que, cada vez mais (assim se espera), os pais educam de maneira igual raparigas e rapazes. Mas ainda há muito a fazer, senão vejamos:

Depois de comentar o assassínio de Carol, Hannah e Louise, mulher e filhas de John Hunt, comentador britânico de corridas de cavalos, alegadamente pelo ex-namorado de Louise, que terá usado uma besta para cometer os três crimes, ouvi o seguinte comentário: “Quem é que namora com um tipo que tem uma besta em casa?” Comentário este que vai no mesmo sentido de responsabilizar as mulheres pelas violações sofridas: “Porque é que estavas na rua àquela hora? Porque é que tinhas um vestido tão curto? Porque é que te embebedaste?” Nos meios de comunicação social britânicos o que se discutia no dia seguinte ao crime era que uma pessoa pode ter uma besta, não pode andar com ela na rua sem uma razão específica, por isso, era preciso repensar a lei. Ou seja, a reflexão não é sobre quem matou, mas sobre quem foi morto; não é sobre o tipo que usou a besta para matar, mas sobre a arma em si.

Segundo a imprensa britânica, a relação já tinha terminado há uns meses, os amigos testemunharam que o alegado assassino era um controlador, proibia a namorada de usar maquilhagem, sair à noite e de falar com outros homens — será um seguidor de Andrew Tate, perguntei-me, olhando para a sua fotografia, onde o homem de 26 anos exibe umas sobrancelhas bem delineadas. Entretanto, o influenciadoracusado de tráfico humano, violação e exploração sexual já pode sair da Roménia e andar livremente pela União Europeia, embora continue a aguardar julgamento.

O alegado assassino era um controlador. A especialista em tecnologia Tatum Hunter aconselha os casais a não partilharem palavras-passe, seja do e-mail, seja das contas bancárias. E, por falar em relações tóxicas, Sahaj Kaur Kohli, uma profissional de saúde mental que escreve no O Washington Postaconselha uma mulher, vítima de violência psicológica, a procurar ajuda.

No início desta semana, foi morta uma mulher no Porto, também pelo ex-companheiro, dois tiros. Em Portugal, entre Janeiro e Março morreram nove pessoas vítimas de violência doméstica. No Reino Unido, os números do Censo de Feminicídio são de 2021 e apontam para 147 mulheres mortas nesse ano por 144 homens. Destas, 78 foram mortas por companheiros ou ex-companheiros, 108 foram mortas em sua casa e 33 estavam a tentar sair de relações tóxicas. A deputada trabalhista Nadia Whittome diz que no Reino Unido, a cada três dias, uma mulher é morta por um homem.

Voltando à culpa das mulheres, estas são repetidamente condenadas por não abandonarem relações abusivas, mas o que é que acontece quando o fazem? Quem está lá para as proteger? Ninguém. Quantas notícias lemos, depois de mais uma mulher morta, que têm uma de duas narrativas: a primeira, que ele era muito simpático, dizia sempre “bom-dia” às vizinhas do bairro e nada fazia prever um desfecho fatal; a segunda, que ela já tinha ido à esquadra vezes sem conta. A primeira, eles são sempre muito sociáveis porque o que se passa, passa-se dentro de casa, onde não há testemunhas; a segunda, elas queixam-se e não são ouvidas.

Falta formação para compreender o que é a violência doméstica, falta formação para perceber quando accionar outros meios, quando tirar a mulher do ambiente violento e acolhê-la numa casa abrigo. Falta formação geral, por exemplo, a autarcas que se deslumbram por paragens de autocarro novas, com fichas para carregar o telefone, mas sem iluminação, necessária para quem anda de transportes à noite, para que a paragem fique bem visível se alguém ali estiver e for importunado. As cidades são amigas das mulheres? Esta semana também ficámos a saber que a maioria dos tampões têm metais tóxicos como o chumbo, arsénio e cádmio. As empresas respeitam as mulheres enquanto consumidoras? Não é isto também violência?

Falta formação aos orientadores espirituais que aconselham a “paciência”, o “sacrifício” e o “que não separe o homem o que Deus uniu”, que falam de uma Eva culpada pela expulsão do paraíso, que pedem modéstia no vestir — esta semana, o vestido escolhido por uma Miss Universo evangélica foi altamente criticado por ser tão tapado e o argumento que esta usou é de subserviência ao futuro marido. “Quando penso no Christian e naquilo que ele gosta e nos momentos em que me acha mais bonita, é absolutamente em algo como isto: intemporal, tapado e elegante.” Que exemplo é este de uma mulher que se anula para agradar a um homem?

Falta formação aos professores, convencidos que se tiverem de dar cidadania ou educação sexual têm de falar de bananas e preservativos, quando educação sexual é ensinar a respeitar raparigas e rapazes, ensinar que ninguém é nosso dono, ensinar a auto-estima, ensinar a empatia.

Falta formação aos meios de comunicação que mostram fotografias do alegado homicida e da vítima, em casal, numa pose romântica, fazendo-nos esquecer o que Louise sofreu nas horas antes de morrer, ela, a irmã e a mãe; imagens que normalizam o mal. Falta formação para dar nomes às vítimas, em vez de “mulher no Porto”, “mãe e filhas em Bushey, Hertfordshire”. Falta formação para deixarmos de escrever “crime passional”. É um crime, ponto. O que há de paixão? O amor não é morte, é vida.

Falta formação aos psicólogos para se inibirem de afirmar que aquele homem tinha problemas mentais, que estava deprimido ou sob muita pressão. A psicóloga e autora britânica Jessica Taylor escreve no antigo Twitter que não há qualquer associação entre homicídio e doença mental descrita no Manual Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (conhecido por DSM), que nenhuma instituição de saúde mental assinaria uma declaração pública em que se afirmasse que a saúde mental está associada à prática de assassínio.

“Os homens matam as mulheres porque querem”escreve Jessica Taylor, acrescentando que a associação à doença mental serve para, por um lado, ajudar a atenuar as penas, e por outro para nos distanciarmos — nós, os saudáveis, não matamos como os loucos. No mesmo sentido, reflecte a intelectual italiana Michela Murgia, no livro Ave Mary e a Igreja inventou a mulhersobre um anúncio italiano de prevenção à violência doméstica, cuja frase final era “A violência contra a mulher é ignorância e loucura”. Ou seja, definindo o agressor como ignorante e louco. Agressor esse que, quase sempre é um companheiro que pode ter uma licenciatura, um pai que pode ter uma empresa bem-sucedida, um irmão que pode ser um professor universitário ou um político, tudo gente bem integrada na sociedade. “Dizer que quem bate nas mulheres é ignorante e louco significa, em última análise, reconhecer-lhes os atenuantes, os mesmos que justificam o homicídio de uma mulher nos títulos dos jornais como “drama de ciúmes””escreve Murgia.

Na Argentina ultraliberal de Milei, o emagrecimento do Estado fez-se com despedimentos nas áreas sociais. Num país onde morre uma mulher a cada 35 horas vítima de violência doméstica, o orçamento destinado à prevenção da violência de género foi reduzido e, no mês passado, o Governo extinguiu o Ministério das Mulheres, Género e Diversidade. Os ataques às mulheres fazem-se em todas as frentes — em países europeus, africanos, asiáticos (viram a notícia de um vereador sul-coreano que culpa as mulheres pelo crescimento da taxa de suicídio entre os homens? Eles não aguentam o sucesso delas). Por isso, é importante mudar para que possamos andar na rua e estar em nossas casas descansadas, para que em vez de escolhermos o urso possamos, em segurança, escolher o homem.

Boa semana!

PS1: Nem todos os homens são agressores, nem todas as mulheres são vítimas. Também há homens vítimas de violência doméstica e que têm ainda mais dificuldade em contar a sua história porque se espera que sejam fortes chefes de família. Ainda há muitos preconceitos a desconstruir.

PS2: Morreu a terapeuta sexual norte-americana Ruth Westheimer, aos 96 anos, e era uma mulher à frente do seu tempo, que defendia o sexo seguro. Em 2003, numa entrevista à Geografia nacional declarou: “Acredito no amor. Acredito em relacionamentos. Acredito em pessoas que ficam juntas por toda a vida ou o maior tempo possível.”

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