Em debate tenso com Harris, Trump descontrola-se e não reconhece derrota eleitoral de 2020

Tudo mudou entre o primeiro e o segundo debate da campanha para as presidenciais norte-americanas de 5 de Novembro. Após uma prestação desastrosa em Junho, o Presidente democrata Joe Biden desistiu da corrida à reeleição e passou o testemunho à sua “vice”, Kamala Harris. E Donald Trump, que dominou o primeiro embate, descontrolou-se esta noite frente à actual candidata dos democratas à Casa Branca. Num debate muito tenso, Trump e Harris vincaram as suas divergências em torno da economia, aborto, emigração, política externa e o caos pós-eleitoral de 2020, com os moderadores da ABC News a assinalarem mentiras ao republicano e contradições à democrata.

E o debate até começou de forma relativamente disciplinada. Harris e Trump, que nunca se tinham encontrado, cumprimentaram-se ao entrar em palco no centro nacional de convenções de Filadélfia, capital da eleitoralmente decisiva Pensilvânia. Sem plateia, e perante os jornalistas David Muir e Linsey Davis, a democrata tomou a iniciativa de estender a mão ao adversário republicano. “Kamala Harris”, apresentou-se. “Prazer em conhecê-la, divirta-se”, respondeu Trump.

Conhecido por divagar nos seus longos discursos de campanha, Trump mostrou-se contido e disciplinado nos minutos iniciais do debate, dominados pela economia. Harris, a quem coube o arranque do embate, declarou ser “a única pessoa em palco com um plano para elevar a classe trabalhadora”, recuperando promessas eleitorais apresentadas nas últimas semanas: atacar os elevados custos da habitação nos Estados Unidos, atribuir um crédito fiscal de 6000 dólares a famílias com filhos em idade pré-escolar, criar deduções fiscais de 50 mil dólares para a constituição de pequenos negócios. E acusou Trump de planear novas reduções de impostos para os mais riscos “às costas da classe média”.

Na réplica, Trump alegou ter deixado aos democratas, em 2020, “a melhor economia na história do país”, com “virtualmente nenhuma inflação”, e chamou pela primeira vez o tema da imigração ao debate, acusando os democratas de serem responsáveis pela perda de “empregos de afro-americanos e de hispânicos” para estrangeiros em situação ilegal no país: “Temos de correr rapidamente com eles.”

Harris desmentiu o ex-Presidente: “Donald Trump deixou-nos o pior desemprego desde a Grande Depressão. Donald Trump deixou-nos a pior crise de saúde pública do último século. Donald Trump deixou-nos o pior ataque à nossa democracia desde a Guerra Civil. E o que fizemos foi limpar a porcaria de Donald Trump.”

Trump recusa proibição nacional do aborto

Tentando caracterizar a adversária como uma “esquerdista radical”, Trump acusou os democratas de permitirem “execuções” de bebés após o parto nos estados que governam, sendo objecto de um dos primeiros momentos de verificação de factos por parte dos moderadores. “Não há nenhum estado neste país onde seja legal matar um bebé depois de nascer”, anotou Linsay Davis.

“Se Donald Trump for eleito, ele vai promulgar uma proibição nacional do aborto”, acusou Harris, citando o Projecto 2025, um documento da autoria da Fundação Heritage, um grupo de reflexão ultraconservador, que os democratas têm caracterizado como um esboço para o programa de governo de uma segunda Administração Trump.

Trump, que voltou novamente a recusar qualquer relação com o documento, apesar da coincidência entre várias propostas que dele constam e algumas promessas eleitorais dos republicanos, negou também a acusação de Harris: “É uma mentira. Não vou decretar uma proibição, não há razão para decretar uma proibição.” E não há razão, argumentou, porque a revogação de Roe vs. Wade pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos veio permitir precisamente que cada estado decida o seu quadro legal relativo à interrupção voluntária da gravidez. “Não, não sou a favor da proibição do aborto”, afirmou.

Harris, contudo, voltou a apontar os riscos de quadros legais restritivos ao nível dos estados, referindo casos de mulheres “a sangrar em parques de estacionamentos”, vendo recusada assistência médica após abortos espontâneos devido ao alegado receio de médicos e enfermeiros de consequências legais.

O segmento do debate terminaria com Trump a perguntar a Harris se proibiria o aborto ao “nono mês”. A democrata, momentaneamente surpreendida, tentou devolver a pergunta e questionar se o republicano vetaria uma proibição nacional que possa surgir do Congresso. Trump defende que o cenário não se colocará.

Imigrantes ‘estão a comer os cães, estão a comer os gatos’

Em Filadélfia, o candidato republicano voltou a relacionar a imigração ilegal não só com os desafios económicos da classe média norte-americano, como com uma suposta subida da criminalidade no país. E referiu um boato que tem dominado nos últimos dias as redes sociais e alguma imprensa mais conotada com o campo republicano: que imigrantes ilegais do Haiti estarão a roubar cães e gatos de estimação na cidade de Springfield, no Ohio, para depois se alimentarem dos animais.

“Estão a comer os cães, estão a comer os gatos”, acusou, nomeando Harris como responsável máxima pela política migratória e fronteiriça dos Estados Unidos. Muir, o moderador, afirmou então que a ABC News tinha falado com o autarca da cidade em questão e que este não tinha qualquer informação credível que corroborasse o rumor, que está a ser insistentemente difundido por figuras republicanas como o candidato a “vice” de Trump, J.D. Vance.

Mas Trump cavalgou o boato – “vi na televisão”, disse – e recuperou acusações lançadas ao longo da campanha. Como, por exemplo, que “o crime está a descer em todo o mundo e a subir aqui”, nos Estados Unidos, porque países como “a Venezuela” estarão a esvaziar as suas prisões e a enviar os seus reclusos para as fronteiras norte-americanas. Novo verificação de fatos dos moderadores: o FBI afirma que a criminalidade tem estado a descer nos EUA. Trump acusa as autoridades de “fraude” e diz que os dados estão incompletos.

E as teorias de fraude eleitoral surgem pela primeira vez no debate. Trump acusa os democratas de permitirem a entrada de ilegais para que estes possam votar nas eleições, prejudicando os republicanos (os casos de voto por pessoas não habilitadas são residuais, apontam todas as fontes autorizadas sobre a matéria).

Harris, que recordou ter combatido o crime transfronteiriço enquanto procuradora-geral do estado da Califórnia, acusou Trump de preferir “fazer campanha com um problema em vez de resolver um problema”, lembrando a influência decisiva do candidato presidencial para que os republicanos recusassem este ano, no Congresso, um pacote legislativo que teria levado a um reforço de meios de segurança na fronteira e a limitações na concessão de asilo (que, mais tarde, o Presidente Biden acabou por decretar). Ao sabotar o acordo, acusou Harris, Trump prejudicou também os esforços das autoridades para travar o fluxo de drogas como fentanil, substância no centro da gravíssima crise de toxicodependência que tem atingido o país.

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