Há 34 anos, enquanto os jornalistas que escreviam para o PÚBLICO o deixavam de fazer “para o boneco” e o jornal chegava finalmente às bancas, Lídia Jorge andava para os lados da Rua D. João V, no bairro lisboeta do Rato, e olhava para as jovens mulheres carregadas de sacos de plástico de onde saíam pacotes de leite e folhas de couves, com quem, por vezes, partilhava o assento do autocarro. Delas rescendia cheiro a lixívia e a produtos de limpeza, um cansaço que as fazia adormecer no caminho para a família, depois de uma longa jornada de trabalho. “Quero imaginar que há muito as suas filhas tiveram futuros diferentes.” Que estudaram, que andaram na universidade, que se tornaram enfermeiras, jornalistas ou deputadas na nação.
Era este futuro, para mulheres criadas em liberdade, que a escritora Lídia Jorge gostaria que todas tivessem alcançado, como salientou na sua intervenção na conferência que celebra, na manhã desta terça-feira, o 34.º aniversário do PÚBLICO e debate precisamente o que é isto de ser mulher me liberdade.
“Ao longo destes 50 anos, as portuguesas foram conseguindo vencer o preconceito de uma suposta assimetria, tida como insuperável, das capacidades inatas entre homens e mulheres.” Tornaram-se “cirurgiãs e pilotas.” Conseguiram entrar nos tribunais, ultrapassada a falácia de que não teriam “contenção verbal” ou “distanciamento emocional” para tomar uma decisão objectiva, viram as dimensões religiosas e civis do casamento separadas, conquistaram o direito à interrupção voluntária da gravidez.
“Foi um longo e penoso caminho”, que, avisa, está longe de chegar ao fim. Os estereótipos na discriminação de género, a violência, continuam “vivos por detrás das portas”.
E se há mulheres que chegaram a vidas profissionais com patamares de exigência, mais qualificados, também as há as que mantêm em condições de grande vulnerabilidade, de grande debilidade. Esse futuro, que esperava para as filhas das mulheres que limpavam as casas e as empresas da cidade grande e, ao fim do dia, apanhavam os autocarros em direcção ao subúrbio, não está assegurado. “Muitas filhas mantêm trabalhos tão precários quanto as suas mães.”
São como “dois continentes que convivem lado a lado e parecem não se tocar”. “O universo das mulheres avança a diferentes velocidades”, que Lídia Jorge, justifica assim: o “cruzamento entre o peso da inércia para a mudança” e “o peso do preconceito que atrasa a aplicação da lei”.
Nesta mudança, a escritora assinala o papel do PÚBLICO, que veio tornar pública “a promessa feita 16 anos antes, de assegurar a liberdade de pensamento e a desenvolvê-la de forma progressista” e de dar corpo e voz à “causa das mulheres”, que assim “ganhou chances que até aí não havia alcançado”.
Quotas para “mudar mentalidades”
Neste 34.º aniversário, que coincide com o ano em que passa meio século sobre o 25 de Abril, o PÚBLICO quis debater o que é “Ser mulher em Liberdade”. E arrancou o dia com um pequeno-almoço que juntou a astrobióloga Zita Martins, a presidente executiva da Sonae (proprietária do PÚBLICO), Cláudia Azevedo, moderada pela jornalista Bárbara Reis.
Apesar de apontarem uma grande evolução na entrada de mulheres nas suas áreas de trabalho não deixam de notar que há ainda muitas desigualdades a combater. Cláudia Azevedo lembrou, por exemplo, como será importante intervir e “puxar” mais mulheres para cargos de direcção, para os primeiros níveis de chefia para que possam chegar a cargos mais altos e combater as diferenças de género e salariais que ainda aí persistem.
Zita Martins, por outro lado, notou que, em certas instituições, ainda há candidaturas que não são abertas, que ainda são barradas a mulheres ou a estrangeiros. E ambas defenderam a existência de quotas de género nas empresas, nas universidades, na política, não como um fim em si, mas como um “mecanismo”. Um mecanismo que ajude a “subir os números”, a mudar a representação das mulheres, “mas acima de tudo mudar as mentalidades”, frisou a astrobióloga.