Mário Soares foi denunciado por crime de traição à pátria pela sua participação no processo de descolonização. “Soares não acreditava que fosse possível democratizar Portugal sem descolonizar rapidamente”, escreve o investigador (Iscte-IUL) Bruno Cardoso Reis, em 2017. Provavelmente tinha toda a razão. O papel histórico que desempenhou nesse contexto valeu-lhe o ódio de muita gente, designadamente de algumas pessoas que se sentiram injustiçadas por terem de abandonar os seus bens nas colónias portuguesas de onde tiveram de fugir, em alguns casos à pressa e sem possibilidade de conservarem o que viam como produto do seu trabalho.
Portugal descolonizou tarde e a más horas, tendo resistido anos a fio às recomendações das Nações Unidas, insistindo em manter as “províncias ultramarinas”, a partir de certa altura (1961) ao preço de uma guerra que causou milhares de mortos entre os militares portugueses e os guerrilheiros dos movimentos independentistas das colónias e as populações locais. As guerras de libertação foram também condição essencial da democratização do nosso país – mas o custo foi terrível. As mortes e as incapacidades causadas são as mais sinistras sombras que pairam sobre a gloriosa data de 25 de Abril de 1974.
Marcelo Rebelo de Sousa é agora designado pela extrema-direita como o novo hipotético arguido de idêntico crime, por ter ousado reconhecer a responsabilidade de Portugal pelos danos causados por longos séculos de colonialismo, incluindo situações historicamente documentadas de massacres de populações civis, denunciados por terceiros, como o já bem conhecido caso de Wiriyamu, em Tete, Moçambique, em Dezembro de 1972, revelado pelo padre católico britânico Adrian Hastings e publicitado pelo Os tempos. António Costa, então primeiro-ministro, apresentou um pedido de desculpas oficial, em nome da República Portuguesa, numa visita a Moçambique em 2022.
Segundo as regras da Constituição da República e todas as descrições contidas nas várias leis penais, a começar pelo Código do mesmo nome, só existem os crimes expressamente previstos – descritos, “tipificados” – em lei anterior e expressa da Assembleia da República (ou por esta autorizada). E como tal punidos, com pena de prisão, ou multa ou qualquer outra. Tipicamente, a privação de liberdade, em primeira linha ou em sucedâneo.
Segundo o art. 308.º do Código Penal, comete o crime de traição à pátria quem, “por meio de usurpação ou abuso de funções de soberania (…) a) tentar separar da Mãe-Pátria ou entregar a país estrangeiro ou submeter à soberania estrangeira todo o território português ou parte dele; ou b) ofender ou puser em perigo a independência do país”. A pena prevista é de prisão de dez a 20 anos. A Constituição prevê, compreensivelmente, a possibilidade de destituição do cargo do Presidente da República em casos de crimes cometidos no exercício de funções, prevendo foro especial (Supremo Tribunal de Justiça) e reservando a iniciativa à Assembleia da República, em votação por maioria qualificada.
Ainda consigo, com algum esforço, perceber a lógica dos que tentaram incriminar Mário Soares, apesar da sua razão histórica. Mas a ideia de responsabilizar criminalmente o actual Presidente da República, com base nas declarações feitas, nas vésperas de 25 de Abril, no jantar com a imprensa estrangeira, parece-me, simplesmente, disparatada. Mas não é de todo inocente. Muito pelo contrário.
A sugestão de participação criminal não tem qualquer correspondência na lei, está simplesmente a ser usada para fazer baixa guerrilha política. Suponho que o efeito desejado e provavelmente parcialmente conseguido é o descrédito político (e moral) de Marcelo Rebelo de Sousa. O discurso populista e demagógico da extrema-direita tem imaginação fértil e poderá ainda haver aqui o sabor da vingança pelas notícias veiculadas, durante a última campanha eleitoral, sobre a oposição de Marcelo à possibilidade de acordos de governo com a mesma.
Mas conviria não exagerar. Nem na imaginação nem na vingança. A menos que o país tenha enlouquecido, ainda deitam fora o bebé com a água do banho. Vamos ver se não se enganam nos despejos.